João Saldanha, Nelson Rodrigues e quem mais estiver. Todos na tranquilidade da eternidade com seus copos cheios, em torno de uma mesa - provavelmente barulhenta - naquela velha algazarra, que se tornam as boêmias discussões futebolisticas. Aí, não mais que de repente se ouve aquele estridente barulho peculiar dos ultraleves e então toda aquela baderna silencia-se.
Uns perguntam: "Será?" - Já outros: "Não é possivel."
Sim, ele adentra no ambiente. Se ouve a rouca voz de Nelson: "Até que enfim... O que você fez para ficar lá, mais que a gente? Amigos, o homem gostou mesmo de viver o suficiente para estar entre aqueles debeis mentais." - João: "Mas você hein? Deixa ele chegar..."
É meus caros, hoje teremos muita conversa de botequim, muita coisa pra ser contada e posta em dia, lá na morada eterna, dos eternos.
Pessoalmente, me recordo do Armando Nogueira somente no Sportv, quando ele fazia aparições em programas e as vezes entrevistando grandes nomes do esporte, isso por volta de 1998 - 2001.
Fui começar a ler o Armando, mais recentemente. A sensação que suas palavras me passaram foram incriveis. Eu lia e sabia estar diante de uma pedra preciosa.
Eu pensava:
"Estou diante do elo perdido. Ele tem a paixão do Nelson e do João, com as mesmas nuances literarias riquissimas. Com um porém: A visão limpa, clara e cristalina. Coração aberto e mente pura. Como ele conseguiu tamanha neutralidade?"
Eu digo uma coisa para o criador - caso o mesmo leia - Você achou alguem perfeito para te acessorar. Ele está aí agora, aproveite!
Hoje o espaço não será meu - como prometido antes - será de alguem anos luz a frente.
Brindo a todos, com três crônicas deste grande escritor - que também creio ter sido um grande homem - o qual deixará saudades a todos os jornalistas, estudantes e amantes de um bom texto:

Viver ou viver!
Não, o Fluminense não pode morrer.
Pelo belo gol de Ademir, no supercampeonato de 46; pelos milagres que obrava Carlos Castilho, o goleiro prodigioso; pela prosa de Coelho Neto; pela paixão homérica de Nelson Rodrigues; pelos vitrais da sede imperial nas Laranjeiras; pela Taça Olímpica; pela gota de lágrima que pressenti, ontem, no rosto vincado de um amigo; pela dinastia Gallotti; pelo sorriso fidalgo de Haroldo Barbosa; pelo humor de Sérgio Porto, o Stanislau Ponte Preta; pelas irreverências de Ronaldo Bôscoli; pelo marinheiro sueco, o Hans, que canta o Fluminense em tantos idiomas; pelo clã dos Carneiro de Mendonça; pelos passes indeléveis de Romeu Pelliciari; pela consagração de Telê Santana, nos campos tricolores; pelo amor de Hugo Carvana; pelos poemas, todos!, de Chico Buarque; pelo time de botões de Carlos Heitor Cony; pelo Braguinha, que leva o clube nas próprias entranhas pelo mundo afora; pelas braçadas olímpicas de João Havelange na piscina tricolor; pela bola iluminada de Batatais, Santamaria, de Romeu, de Tim, de Pedro Amorim, Orlando Pingo de Ouro, de Carreiro e Afonsinho; pelo Gravatinha; pelas nuvens de pó-de-arroz que perfumam as tardes do Maracanã; pelo bairro das Laranjeiras, cujas ruas, todas elas!, desembocam na lendária Álvaro Chaves; pelo estadinho, imortalizado, ao nascer, com o gol de Friendereich dando ao Brasil o Sul-americano de 19; pelo lirismo de Oduvaldo Cozzi que narrava, como ninguém, um gol do seu Fluminense; por Luiz Murgel, que amou o clube com todas as letras; por Benício Ferreira Filho, sepultado com a bandeira do clube no peito; por Francisco Horta que entoou, pela primeira vez, o grito de guerra "Vencer ou Vencer!"
Por Gerson e Rivelino que, até hoje, querem tão bem ao Fluminense; pelo Flamengo que nasceu de uma costela tricolor; pelo Botafogo, velho co-irmão de rancores e de amores remotos; pelo mais enxuto verso do futebol: Fla-Flu, doce aliteração carioca; pela bandeira tricolor: o branco, símbolo da alma pura, o vermelho, a cor dos nobres e o verde, a luz da criação do mundo!
E porque o Fluminense não pode morrer, sua divisa, agora, é Viver ou Viver!
(Armando Nogueira quando o Flu estreou na segunda divisao)
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A voz que lateja
O Fluminense ca
Mal se dão conta de que o desterro de um grande clube não é um martírio solitário. Por tabela, atinge todo mundo. O Flamengo nunca seria o mesmo se não tivesse a fustigá-lo o tenaz fervor do Fluminense. Os dois criaram, juntos, um dos maiores mitos do futebol brasileiro que é o Fla-Flu. Nelson Rodrigues dizia que há um parentesco óbvio entre o Fla e o Flu. Seriam os irmãos Karamazov do futebol. Amor e ódio.
Eu, por mim, vivi uma juventude atormentada pelo "frisson" dos jogos entre Botafogo e Fluminense. Era o chamado "clássico vovô". A manchete dos jornais exaltava cada batalha entre os dois mais antigos rivais do futebol carioca. O Fluminense era um pesadelo na vida dos outros times. Tinha mais títulos. Tinha mais nobreza. Os outros tinham escudo. O Fluminense tinha brasão.
Por favor, não queiram ver no flagelo do Fluminense apenas um time de futebol agonizando às portas do inferno. Estamos vendo consumir-se nas chamas de um longo martírio muito mais que uma simples equipe. São centenas de troféus. São vitrais de três cores mágicas a filtrar a luz de tantas glórias. O Fluminense é um hino. É um sonho de menino.
Mário Lago diz que há muito tempo o Fluminense saiu de suas cogitações existenciais. Do alto de seus oitenta anos, tem todo o direito de ignorar o presente do clube. O tempo passado enche de glórias seu bravo coração tricolor. O Carlinhos é que não tem. O Carlinhos, um garoto de 14 anos, ainda tem muito que palpitar, coração na mão, por seu clube tantas vezes campeão. O Fluminense precisa de seu amor. Mesmo que, agora, Carlinhos não tenha coragem de aparecer no colégio vestido com a camisa do Fluminense.
Bem que ele podia mudar de colégio. Chegaria lá, cara nova, metido no uniforme do Vasco da Gama, que é o time da moda no Rio. Carlinhos seria até festejado.
Mário Filho dizia que é mais fácil mudar de mulher que mudar de clube.
Pois é esse o caso do Carlinhos. Ele não tem duas caras. Nasceu Fluminense e Fluminense há de morrer.
Pois é pensando no Carlinhos que escrevo sobre o drama do clube tricolor.
Se o Fluminense acabasse, de vez, o mundo ficaria sem graça pro Carlinhos.
Ele não pode, nem quer virar Flamengo, nem Botafogo, nem Vasco. O sentimento clubístico é mais forte que o sentimento patriótico. A criança descobre o clube do coração antes de descobrir a própria pátria. Carlinhos aprendeu a cantar o hino do Fluminense muito antes de aprender a cantar o Hino Nacional. Antes de ouvir falar em Brasil, Carlinhos já ouvia o pai repetir, dia e noite, debruçado no berço: Flu-mi-nen-se! Essa é a voz que lateja nas entranhas de Carlinhos.
O Fluminense é hoje uma paixão golpeada no coração de Carlinhos.
(Armando Nogueira, após uma nova queda do Fluminense)
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Armando Nogueira
Quarta-feira, 24 de Julho de 2002
"O Fluminense retira Telê da vida reclusa e presta-lhe uma bela homenagem, no rol de celebrações do centenário. Na era do profissionalismo, poucos encarnam tão bem a glória do clube como Telê Santana. Que o digam os que o viram, um fiapo de gente, a ensopar a camisa de talento e suor, no começo dos anos cinqüenta. Eu vi, cansei de ver Telê criar, ao lado de Didi, momentos que, depois, Nelson Rodrigues recriava na sua prosa poética de cons

A imortalidade do Fluminense está nos seus nobres troféus, nos seus castos vitrais, nas nuvens de pó-de-arroz perfumadas, na bandeira de três cores, no hino (o mais bonito de quantos Lamartine Babo compôs pros clubes do Rio); na aristocracia de Marcos Carneiro de Mendonça; na saudade de Romeu e Carreiro; na recordação de Orlando Pingo de Ouro e Pedro Amorim. Mais que tudo, o Fluminense do meu tempo está nos gols incomparáveis de Ademir Menezes, um portento de artilheiro que não dava por menos: no supercampeonato de 46, cada gol dele tinha ressonâncias de verdadeira ópera. Ao lado de Ademir, na mesma dimensão histórica, figura o goleiro Castilho. Sem ser santo, o moço fazia milagres em baixo das traves. Enfim, são tantas e tamanhas as fulgurações pessoais na vida do Fluminense que seria impossível enumerá-las sem cometer imperdoáveis omissões.
O Fluminense de minha memória afetiva é, sobretudo, Nelson Rodrigues, autor dos cânticos mais poéticos, mais ardentes que alguém já dedicou a um clube de futebol. Em Nelson, com quem briguei e desbriguei algumas vezes, aprendi que o Fluminense veio ao mundo com a vocação da eternidade.
Preciosa lição que trago comigo, pela vida afora, no melhor do meu coração".