terça-feira, 30 de março de 2010

Com a palavra, Armando Nogueira

Estou aqui imaginando meus caros, tentem captar:
João Saldanha, Nelson Rodrigues e quem mais estiver. Todos na tranquilidade da eternidade com seus copos cheios, em torno de uma mesa - provavelmente barulhenta - naquela velha algazarra, que se tornam as boêmias discussões futebolisticas. Aí, não mais que de repente se ouve aquele estridente barulho peculiar dos ultraleves e então toda aquela baderna silencia-se.
Uns perguntam: "Será?" - Já outros: "Não é possivel."
Sim, ele adentra no ambiente. Se ouve a rouca voz de Nelson: "Até que enfim... O que você fez para ficar lá, mais que a gente? Amigos, o homem gostou mesmo de viver o suficiente para estar entre aqueles debeis mentais." - João: "Mas você hein? Deixa ele chegar..."
É meus caros, hoje teremos muita conversa de botequim, muita coisa pra ser contada e posta em dia, lá na morada eterna, dos eternos.

Pessoalmente, me recordo do Armando Nogueira somente no Sportv, quando ele fazia aparições em programas e as vezes entrevistando grandes nomes do esporte, isso por volta de 1998 - 2001.
Fui começar a ler o Armando, mais recentemente. A sensação que suas palavras me passaram foram incriveis. Eu lia e sabia estar diante de uma pedra preciosa.
Eu pensava:
"Estou diante do elo perdido. Ele tem a paixão do Nelson e do João, com as mesmas nuances literarias riquissimas. Com um porém: A visão limpa, clara e cristalina. Coração aberto e mente pura. Como ele conseguiu tamanha neutralidade?"
Eu digo uma coisa para o criador - caso o mesmo leia - Você achou alguem perfeito para te acessorar. Ele está aí agora, aproveite!

Hoje o espaço não será meu - como prometido antes - será de alguem anos luz a frente.

Brindo a todos, com três crônicas deste grande escritor - que também creio ter sido um grande homem - o qual deixará saudades a todos os jornalistas, estudantes e amantes de um bom texto:



Viver ou viver!

Não, o Fluminense não pode morrer.
Pelo belo gol de Ademir, no supercampeonato de 46; pelos milagres que obrava Carlos Castilho, o goleiro prodigioso; pela prosa de Coelho Neto; pela paixão homérica de Nelson Rodrigues; pelos vitrais da sede imperial nas Laranjeiras; pela Taça Olímpica; pela gota de lágrima que pressenti, ontem, no rosto vincado de um amigo; pela dinastia Gallotti; pelo sorriso fidalgo de Haroldo Barbosa; pelo humor de Sérgio Porto, o Stanislau Ponte Preta; pelas irreverências de Ronaldo Bôscoli; pelo marinheiro sueco, o Hans, que canta o Fluminense em tantos idiomas; pelo clã dos Carneiro de Mendonça; pelos passes indeléveis de Romeu Pelliciari; pela consagração de Telê Santana, nos campos tricolores; pelo amor de Hugo Carvana; pelos poemas, todos!, de Chico Buarque; pelo time de botões de Carlos Heitor Cony; pelo Braguinha, que leva o clube nas próprias entranhas pelo mundo afora; pelas braçadas olímpicas de João Havelange na piscina tricolor; pela bola iluminada de Batatais, Santamaria, de Romeu, de Tim, de Pedro Amorim, Orlando Pingo de Ouro, de Carreiro e Afonsinho; pelo Gravatinha; pelas nuvens de pó-de-arroz que perfumam as tardes do Maracanã; pelo bairro das Laranjeiras, cujas ruas, todas elas!, desembocam na lendária Álvaro Chaves; pelo estadinho, imortalizado, ao nascer, com o gol de Friendereich dando ao Brasil o Sul-americano de 19; pelo lirismo de Oduvaldo Cozzi que narrava, como ninguém, um gol do seu Fluminense; por Luiz Murgel, que amou o clube com todas as letras; por Benício Ferreira Filho, sepultado com a bandeira do clube no peito; por Francisco Horta que entoou, pela primeira vez, o grito de guerra "Vencer ou Vencer!"
Por Gerson e Rivelino que, até hoje, querem tão bem ao Fluminense; pelo Flamengo que nasceu de uma costela tricolor; pelo Botafogo, velho co-irmão de rancores e de amores remotos; pelo mais enxuto verso do futebol: Fla-Flu, doce aliteração carioca; pela bandeira tricolor: o branco, símbolo da alma pura, o vermelho, a cor dos nobres e o verde, a luz da criação do mundo!
E porque o Fluminense não pode morrer, sua divisa, agora, é Viver ou Viver!

(Armando Nogueira quando o Flu estreou na segunda divisao)

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A voz que lateja

O Fluminense cai pra Terceira Divisão. Dito assim, em breve oração, soa como um fiapo de conversa. Papo de segunda-feira chuvosa. Pra chatear tricolor, os irônicos dizem que, felizmente, não existe a Quarta Divisão.
Mal se dão conta de que o desterro de um grande clube não é um martírio solitário. Por tabela, atinge todo mundo. O Flamengo nunca seria o mesmo se não tivesse a fustigá-lo o tenaz fervor do Fluminense. Os dois criaram, juntos, um dos maiores mitos do futebol brasileiro que é o Fla-Flu. Nelson Rodrigues dizia que há um parentesco óbvio entre o Fla e o Flu. Seriam os irmãos Karamazov do futebol. Amor e ódio.
Eu, por mim, vivi uma juventude atormentada pelo "frisson" dos jogos entre Botafogo e Fluminense. Era o chamado "clássico vovô". A manchete dos jornais exaltava cada batalha entre os dois mais antigos rivais do futebol carioca. O Fluminense era um pesadelo na vida dos outros times. Tinha mais títulos. Tinha mais nobreza. Os outros tinham escudo. O Fluminense tinha brasão.
Por favor, não queiram ver no flagelo do Fluminense apenas um time de futebol agonizando às portas do inferno. Estamos vendo consumir-se nas chamas de um longo martírio muito mais que uma simples equipe. São centenas de troféus. São vitrais de três cores mágicas a filtrar a luz de tantas glórias. O Fluminense é um hino. É um sonho de menino.
Mário Lago diz que há muito tempo o Fluminense saiu de suas cogitações existenciais. Do alto de seus oitenta anos, tem todo o direito de ignorar o presente do clube. O tempo passado enche de glórias seu bravo coração tricolor. O Carlinhos é que não tem. O Carlinhos, um garoto de 14 anos, ainda tem muito que palpitar, coração na mão, por seu clube tantas vezes campeão. O Fluminense precisa de seu amor. Mesmo que, agora, Carlinhos não tenha coragem de aparecer no colégio vestido com a camisa do Fluminense.
Bem que ele podia mudar de colégio. Chegaria lá, cara nova, metido no uniforme do Vasco da Gama, que é o time da moda no Rio. Carlinhos seria até festejado.
Mário Filho dizia que é mais fácil mudar de mulher que mudar de clube.
Pois é esse o caso do Carlinhos. Ele não tem duas caras. Nasceu Fluminense e Fluminense há de morrer.
Pois é pensando no Carlinhos que escrevo sobre o drama do clube tricolor.
Se o Fluminense acabasse, de vez, o mundo ficaria sem graça pro Carlinhos.
Ele não pode, nem quer virar Flamengo, nem Botafogo, nem Vasco. O sentimento clubístico é mais forte que o sentimento patriótico. A criança descobre o clube do coração antes de descobrir a própria pátria. Carlinhos aprendeu a cantar o hino do Fluminense muito antes de aprender a cantar o Hino Nacional. Antes de ouvir falar em Brasil, Carlinhos já ouvia o pai repetir, dia e noite, debruçado no berço: Flu-mi-nen-se! Essa é a voz que lateja nas entranhas de Carlinhos.
O Fluminense é hoje uma paixão golpeada no coração de Carlinhos.

(Armando Nogueira, após uma nova queda do Fluminense)


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Armando Nogueira
Quarta-feira, 24 de Julho de 2002

"O Fluminense retira Telê da vida reclusa e presta-lhe uma bela homenagem, no rol de celebrações do centenário. Na era do profissionalismo, poucos encarnam tão bem a glória do clube como Telê Santana. Que o digam os que o viram, um fiapo de gente, a ensopar a camisa de talento e suor, no começo dos anos cinqüenta. Eu vi, cansei de ver Telê criar, ao lado de Didi, momentos que, depois, Nelson Rodrigues recriava na sua prosa poética de consagração tricolor. Aliás, foi outro ilustre tricolor, Mário Filho, quem primeiro chamou Telê de "Fio de Esperança". Nada mais feliz. Telê era em cada jogo a renovada promessa de um novo gol, de um novo triunfo, de um novo título. Como o de campeão carioca de 1951. Solidário, Telê subia e descia o lado direito do campo, defendendo e atacando, guerreiro incansável. Era, em 51, a prefiguração do que viria a ser o também infatigável Zagallo, no mundial de 58.
A imortalidade do Fluminense está nos seus nobres troféus, nos seus castos vitrais, nas nuvens de pó-de-arroz perfumadas, na bandeira de três cores, no hino (o mais bonito de quantos Lamartine Babo compôs pros clubes do Rio); na aristocracia de Marcos Carneiro de Mendonça; na saudade de Romeu e Carreiro; na recordação de Orlando Pingo de Ouro e Pedro Amorim. Mais que tudo, o Fluminense do meu tempo está nos gols incomparáveis de Ademir Menezes, um portento de artilheiro que não dava por menos: no supercampeonato de 46, cada gol dele tinha ressonâncias de verdadeira ópera. Ao lado de Ademir, na mesma dimensão histórica, figura o goleiro Castilho. Sem ser santo, o moço fazia milagres em baixo das traves. Enfim, são tantas e tamanhas as fulgurações pessoais na vida do Fluminense que seria impossível enumerá-las sem cometer imperdoáveis omissões.
O Fluminense de minha memória afetiva é, sobretudo, Nelson Rodrigues, autor dos cânticos mais poéticos, mais ardentes que alguém já dedicou a um clube de futebol. Em Nelson, com quem briguei e desbriguei algumas vezes, aprendi que o Fluminense veio ao mundo com a vocação da eternidade.
Preciosa lição que trago comigo, pela vida afora, no melhor do meu coração".

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